quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O mundo que somos

O texto é grande, a imagem é essa mesmo, e sinto muito se o vocabulário incomodar. Lidemos com nossos incômodos.
O mês é dezembro, ano 2017, cidade de Registro, Vale do Ribeira, estado de São Paulo. O relógio ainda não marcava 18h. Horário de verão, céu extremamente claro e iluminado, ainda não sinalizava nada da noite. As pessoas estavam na rua, o calor convidava roupas curtas, pés sobre chinelos e alguma leveza e descontração.
Eu voltava do trabalho, vestia uniforme e caminhava de mãos dadas com a Thais, minha namorada e companheira.
Conversávamos sobre não faço mais ideia do quê, quando ouvimos uma voz rouca tentando dizer em som alto algumas coisas difíceis de entender (ou de aceitar) naquele momento. Olhamos pra trás e encontramos o dono da voz. Um senhor, idoso, andando com a ajuda de uma bengala e ainda assim com muita dificuldade. Homem, branco, passava dos 70 anos de idade. Julgamos que ele talvez estivesse chamando nossa atenção pra pedir ajuda pra caminhar. Fomos voltando um pouco na direção dele, que não estava muito longe, quando identificamos, afinal, o que ele tentava gritar na nossa direção.
- Putas! Duas putas. Porcas. Têm que morrer.
Demos a volta. Sequer nos olhamos uma pra outra direito. As mão inseguras seguiram segurando uma na outra, mas a caminhada se fez silenciosa, e os passos antes despreocupados e leves já se faziam incertos. Fizemos tentativas de retomar nosso assunto anterior. Já nem lembrávamos - e ainda não me lembro - sobre que trivialidades conversávamos antes. Continuávamos a ouvir:
- Duas putas. Porcas. Eu vou matar vocês.
Olhamos pra trás de novo. O senhor apoiou a maior parte do seu peso numa das pernas, segurou a bengala com as duas mãos e apontou para nós. Imitando alguém em posse de uma arma, o homem fingiu atirar na gente com sua arma-bengala. Ajeitou a mira e disparou, uma, duas, três, quatro vezes. "Têm que morrer", repetia o homem.
Eu tentava ignorar, tentei puxar a mão da Thais pra que continuássemos nosso caminho. Um homem que andava com tanta dificuldade desde o início da rua, se aguentou praticamente em apenas uma de suas pernas pra fingir que matava a mim e minha companheira. Thais olhou pra ele e fez um sinal de "xiu" com o dedo na frente dos lábios. Sinalizava que ele se calasse. Ele insistia:
- Eu vou matar vocês, suas putas. Eu vou rasgar vocês! Pegar uma faca e enfiar nessas buceta, e rasgar a buceta de vocês. Têm que morrer!! Eu vou matar vocês!!
Ele não ia parar. Ele não queria parar. Então até que a voz rouca desse homem se perdesse às nossas costas, continuamos andando, de mãos dadas. Mal conseguimos conversar muito sobre isso. Algumas palavras sobre como é triste e absurdo ainda passarmos por isso, e silêncios. Outros assuntos triviais tentando ser iniciados, mas já sem muito sucesso. Eu fiquei sem reação, incrédula, impotente. Minha companheira ficou com bastante raiva, sentia vontade de devolver todo aquele ódio. No entanto, seguimos de volta pra nossa casa. Cada uma afetada de alguma maneira, as duas arrasadas.
Não foi a primeira vez que sofremos algum tipo de assédio, julgamento, violência. Infelizmente, sei que por ora não será a ultima vez. Senti que não fiz nada do que poderia ter feito. A essa altura, honestamente, já nem sei o que eu poderia ter feito. Esse nem é o ponto aqui. No que diz respeito a esse ocorrido em específico, não tive condições pra nada além de silenciar ali e permanecer em silêncio, evitando retomar a cena mesmo em meus pensamentos, até agora.
Recentemente estive na exposição "Histórias da Sexualidade", no MASP, com a minha companheira. Íamos bem, conversando sobre o que víamos, felizes por vermos famílias com seus filhos e filhas, comentávamos as obras, fazíamos carinhos no rosto uma da outra. Em algum ponto, encontramos as obras de Moacir Soares de Farias. Vimos "Xoxotas (2003)" e seguimos para "Xoxota e faca (2005)" (vide imagem), diante da qual silenciamos, as duas. Equilibrei umas lágrimas que queriam cair e, com dificuldade, comentei com a Thais:
- Caralho, que merda!
Nós duas entendíamos do que se tratava. Ela me abraçou e respondeu:
- Sim, eu também lembrei disso. Na mesma hora.
As violências que sofremos nos afetam e nos invadem subjetivamente, no corpo, na memória. Comprometem nossa saúde, nosso bem-estar. Não existe segurança e pertencimento a um mundo que constantemente nos ameaça de morte, que nos mata e que nos mutila em ato, em discurso ou em fantasia, e que odeia pessoas a partir de seus modos de ser e estar, de expressar identidade, afetividade, sexualidade. Que nos odeia por existirmos. Só que essa merda toda cansa, pessoal. Nós existimos. Lidem com isso. E o façam com decência(de verdade, não aquela medida pelo tamanho da roupa ou por quem a gente beija na boca). Lidem com essas existências que incomodam. Façam algo com esses incômodos que nao seja na direção de mais violência, exclusão, sofrimento. Não da pra ficar sentado nos próprios privilégios se recusando a ver toda essa merda acontecer.
Eu pretendia guardar o relato desse dia de dezembro para conversas entre amigos, espaços seguros. Pretendia me calar, novamente. Silenciar, assim como fiz diante a obra de Moacir Soares de Faria que me remeteu a essa e outras violências já vividas. Por ser mulher, por me relacionar com uma mulher, por ser da periferia. Mas não é assim que vamos avançar enquanto sociedade. E uma hora chega. Cansa. Da vontade de mandar todo mundo à merda. Não da pra ficar segurando essas coisas dentro da gente. Vocês vão ter que nos ouvir. Enquanto vivermos em meio a tanta violência e ódio contra outros seres humanos, reparem. Escutem o que as pessoas, os movimentos sociais, as minorias estão dizendo. Prestem atenção. Pessoas negras, das periferias, prostitutas, mulheres, LGBTs: nós não temos garantidos os mesmos direitos que outras pessoas têm. Sequer caminhamos nas ruas sem estarmos submetidas a assédio, ofensas, violências, olhares de julgamento e condenação. Não vamos nos iludir, gente. Nós ainda não fazemos parte de uma sociedade formada majoritariamente por sujeitos que respeitam e promovem a diversidade. Nós ainda não vivemos em amor, infelizmente. Nós não vivemos no mundo que "gostaríamos de deixar para nossos filhos". Estamos longe dele. E na boa, não é um mundo melhor que temos que deixar para as pessoas. Nós somos esse mundo. Nos responsabilizemos por ele. Temos que ser e formar pessoas melhores para ocupar e deixar nesse mundo. Pra ontem. Pra já.