Não fosse a faca dançante presa entre os dedos, ela estaria desarmada?
Conversa pra caramba.
Carambola vai, carambola vem. Descasca-se uma fatia de espontaneidade e... carambolas!
Verdades, confiança, fé e medo. Devoção. A mesma faca e outras danças. A mesma faca e uma dança. Os mesmos dedos?
A voz dela anuncia: “Lázaro vivia de restos da comida dos ricos que caía no chão. Ele foi para o céu.”
E minha memória resgata: “eu tenho pouco. Queria ter menos ainda”. “Eu gosto é de pobre. A pessoa... quanto menos ela tem, mais eu quero bem”.
Coloridas, assim, foram doações e caridade. São apreciadas, mas pareceram ter se tornado, com o tempo, menos freqüentes e mais intensas, mais “bonitas” e docemente penosas. Seria o preço de envelhecer?
Caridade, caridade, caridade.
Cara idade.
Toda a muita ou pouca, mas cara, idade que simboliza uma vida:
-“A vida da gente... quando a gente a gente é novo, ela é bonita. Mas essa vida mesmo, essa vida é velha!”
Penso que “velha” mesmo, no sentido que minha querida velha me explicava, seria a vida ausente dessas simpáticas velharias...
Velha seria a vida inércia, a vida oca que à alma emudece.
E ainda assim, não o afirmo.
Velha seria se amor não tivesse, se a própria vida ela não quisesse.
E mesmo assim, não sei se concordo comigo.
Velha seria a vida se nada dela se fizesse, se nada nela se doasse,
e, ainda assim, não o assino.
Velha para ela, no entanto, seria sempre e cada vez em que se tratasse da vida dela.
E na certeza bruta em tudo que ela fala, aí é que mora o perigo.
Ela se pinta -com tintas que em parte foram colocadas em suas mãos- num mundo anunciado de paradoxos e negações. Nego-as quase todas: “Não gosto de comer, nem mesmo fruta.” – e come duas carambolas; “Não gosto de música, nem de cantar” – e conta das emocionantes canções de Simão Dias, ou ainda do romance sertanejo de Leandro e Leonardo; “Não gosto de bolo” – mas elogia a mão sempre acertada de Marivalda ao preparar os melhores bolos que ela já comeu; “Não gosto de gente sem ação” – mas elogia carinhosamente a moça sem ação que vinha sendo feiamente desenhada pelo genro...
Eu a pinto –com tintas que me foram emprestadas pela centelha de espontaneidade dela- num universo velado de gostos e afirmações. Simpatizo e acolho-as em mim, quase todas:
na recepção com ternura; na conversa com simplicidade e no tom conselheiro, tom de quem cuida; na insistência em compartilhar – alimento, religiosidade, opinião; na simplicidade de doar – sabonetes, biscoitos, tratar como irmão... Do outro espera um pouquinho e de si, discretamente, entrega um montão.
Essa velha rica, bonita, bonita, bonita, “bonita como uma flor”, me alcança e me desdobra. E me redobra... e des-dobra. Eu com ela, passada, e ela me amarrota. Doce anedota.
Me desperta pro “não” incompreendido no rosto; me faz buscar o “sim” talvez desde o início já posto e me coloca a questionar o projeto que nas entrelinhas, já se colocou em ação, semanalmente e com muito gosto.
Que coisa mais linda! Que esse seja o prefácio do seu projeto, amiga. Nada é mais poesia que a própria vida..
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